terça-feira, 30 de novembro de 2010

Um cão uivando para a lua





Um cão uivando para a lua


Abro a janela para o terreno baldio
cheio de mato, lixo e algumas cabras
(eu joguei fora todas as palavras)
– e vejo um cão uivando para a lua.

O cientista e o filósofo discutem
a origem do universo, o ser e o nada
e não sobram ideias nem palavras
– além de um cão uivando para a lua.

Latem os cães e a caravana passa,
passaram as carroças da desgraça
com as palavras da ambição dos homens
– só resta um cão uivando para a lua.

De tanto misturar o joio e o trigo,
de tirar da ostra a pérola da dor
e queimar as palavras no poema
– só resta um cão uivando para a lua.





quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Os grandes LPs - ou - o velho Vinil


Os grandes LPs, o máximo para se ouvir música com o som perfeito, ou o vinil, como dizem hoje, recriando um saudosismo de um tempo que nem viveram. Mas eram sublimes os LPs, era sublime a música ouvida naqueles bolachões – mas também não os chamávamos bolachões, nome depreciativo, não, nós os respeitávamos. É bonito agora ver renascer esse respeito – pela música mais encorpada, mais autêntica. Hoje são quase infinitas as maneiras de se reproduzir uma música, mas, porque infinitas, também artificiais.

Talvez muita gente discorde desse julgamento, quem sou eu? Deem uma olhada neste blog – clique no nome: EXTINÇÃO – para conferir. Extinção! Antes que acabe. LPs do mundo inteiro – de graça! Basta pagar o frete e uma pequena contribuição para se manter esse que se autodenomina Museu do Futuro. É uma graça! Nada é de graça neste mundo, mas vale a pena conhecer. Talvez você goste. Talvez você goste pelo menos de conhecer.


U.K. PUNK ROCK: RESISTANCE 77

BANDA PUNK INGLESA FORMADA EM 1979,
BELÍSSIMO DISCO EM PERFEITO ESTADO DE CONSERVAÇÃO!





A Momentary Lapse of Reason foi o primeiro álbum da banda Pink Floyd após o abandono de Roger Waters em 1985. Com os singles "Learning to Fly" e "On the Turning Away", chegou a Nº 3 de vendas, tanto no Reino Unido como nos Estados Unidos.



quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Elegia de Finados

A beleza sorri para a morte na varanda,
entre as acácias à beira-mar e à beira-noite.

Estou habitado de ruínas,
alguns fantasmas, pouca cinza.

No limite da montanha uma deusa nua
me oferece o seio,

um pote de mel
e uma gaivota voando sobre a história.

Os dedos de um velho, ocultos sob as barbas,
tecem

imperceptível
a rede do tempo.

A beleza me estrangula, seu diamante implacável.

Uma pétala na taça de vinho, a rosa imarcescível
e o pão nos lábios como uma palavra.

01-11-07

José Carlos Mendes Brandão

sábado, 9 de outubro de 2010

O LEITO DO HOSPITAL




O leito do hospital
era alto de muitos metros.

Eu olhava o mundo
de cima, com galhardia.

Eu olhava o mundo
como quem não olha.

Eu não olhava o mundo:
a vida passava.

Era noite alta.
O leito alto era um leito
de muitos ruídos: motos, carros, ônibus, tratores,
uma bomba atômica, meu Deus!
Todos os barulhos do mundo
chegavam ao meu leito.

Era escuro.
Eu estava alto
ouvindo todos os barulhos do mundo
e alheio.

Doía.
Em algum lugar do mundo
doía.

Doía em mim.
Em algum lugar de mim. No pulso cortado, no lado
direito do corpo, no esquerdo? Em algum lugar
de mim, doía.

Carros passavam.
Na rua, no mundo, nos corredores do hospital.

O enfermeiro estava ausente, presente, outra vez
ausente.
O enfermeiro era um zumbi esvoaçante pelas portas
e janelas do quarto.
E a dor? O que é a dor?

O corpo tenso. O corpo ferve. Não há nada e há
uma tensão no ar, no corpo.
Pior: você não sabe que está sofrendo.
Você está sofrendo.
Como se estivesse levitando: e sofrendo.
Você está atento. Sente todos os ruídos do mundo.
Brecadas, um motor, os motores, mudanças de mar-
cha.
Sopros, sopros, como se um carro respirasse com o
outro.
Os carros entravam pelos corredores do hospital a
dentro
Nós, doentes, moribundos, não existimos.

Lembrem-se: quem está doente num hospital é um
moribundo.
A vida é um fio.
Você está vivo. Você está mais vivo que nunca.
Você sente,
sente que está vivo.
Você está vivo numa tumba de mortos.
O enfermeiro a dois metros de sua porta
é um guardião da sua tumba.
E que tumba fria. Você fervendo.

Você não se importa, mas está fervendo.
Você está fora de perigo, é eterno, mas está ferven-
do.
O que está sentindo? Milhares de vezes lhe vem à
cabeça a mesma idéia:
Não estou sentindo nada. O corpo fervendo.

Folhas verdes no chão. Folhas verdes e vermelhas.
A morte que deveria ter sido e não foi.
Você está morto? Vivo?
As flores murcham nos vasos, não têm raízes.
Eu tenho raízes?

Vruum, vroom, vooom, in, ein, iin, voom, vruum,
vrooom.
As minhas raízes nos ruídos, de fora, de dentro do
hospital.

O que existe fora, dentro de mim?
Que história devo contar?
Devo contar alguma história?
Quem sou? Sou? Fui já alguma coisa?
Ser? Que é ser? Existe um presente de ser? Existe
um passado? O ser tem história? Que fazer do
meu corpo ilusório?

As flores murcham nos vasos, ilusórias.

A noite prossegue, a noite é infinita.
Há um braço negro se estendendo sobre você, um
braço enorme, um braço de sombra, pingando
sangue.

Tudo são perguntas. O que acontece? Até quando?
Eu existo? Por quê? Para quê? Um anjo de sombra
paira sobre você.

A vida é um vaso com um pouco d'água e uma flor
dentro. Alguém pergunta:
– Quem conspira? Ninguém? Sim? Não?
A flor é executada.

A beleza fenece no devido tempo: antes do tempo.
A beleza é perene: mas fenece.
A beleza é eterna, mas como uma idéia.
A beleza vai morrer. Nós não somos nada. A perma-
nência não existe. Pétala murcha. Pó.

A cinza espalhada sobre a terra, a permanência, meu
corpo vão.
Que me queres?
Ó mundo, ó demônios, o nada me espera.

Eu sempre soube: o nada me espera.
Eu não sou nada.
Nada me prende a nada
a não ser este leito de hospital.

Estou feliz.
Não espero nada.
Existe uma dor, mas eu não defino essa dor.
Eu não distingo essa dor. Nem sei se dói.
Ó vida, para que viver?
Eu nem sei se quero viver ou morrer.

Quantas vezes mergulhei do alto precipício
e era uma visão sem fundo
e era o vácuo, era o vácuo, o vácuo.
No fim, não caía mais.
Assim a vida.
Estamos caindo? Cairemos mais? E o vácuo?
Quem não sentiu o vácuo de viver?

Morrer não é nada, viver não é nada.
Que fazer?
O leito do hospital me prende.
Algemas de aço, estou preso, estou preso.
Tenho as mãos e os pés presos em algemas de aço,
e o pescoço, a língua, os olhos, o sexo.

Existir, que é existir?
Existo como um morto-vivo existe.
O que é realmente viver, morrer?

Nem sei se estou sofrendo.
Um século algemado a este leito de hospital.
Os pulsos sangrando, os tornozelos, o pescoço.
A fronte é azul. A fronte é vermelha de sangue
e azul, azul, azul fosforescendo no escuro.

Como brilha, esse escuro.
E o dia não vem, o dia não vem.
Por que queremos a presença do dia?
O que é o dia? Morrer, viver, alguma diferença?

Deuses, acorrentado a este catre negro.
Acorrentado num porão de navio
que sacoleja, aderna com a tempestade – vamos
afundar?
Tenho a certeza de que não vou afundar.
Tudo é certo neste mundo.
Por que sofro?

Nada se acaba, a história continua, ninguém tem im-
portância nenhuma. O homem sofre diante do
universo, mas que é o universo?

Que é o homem? Nada versus nada. Estrelas brin-
cam de cabra-cega, esconde-esconde, mãe-da
-rua.

O que é a vida? Pirulito nas mãos de uma criança,
chupou, acabou-se.
Por que, então, viver?
Resta, do pirulito, o sabor. Para quem? A criança?
Por quanto tempo?
Resta do pirulito o sabor.

As algemas me roem o pulso.
Estou preso a este leito de hospital.
Estou preso à vida e olho meus companheiros, que
são ninguém.
Um coitado com dor de estômago resmunga e vomi-
ta no leito ao lado.
O enfermeiro cochila na cadeira ao lado da porta.
Meus companheiros não nutrem grandes esperanças.

Sei que vou morrer.
Mas não agora. Hoje, nesta noite escura, não penso
na morte.
Hoje vivo a minha morte.
Que longa, a morte.
E, no entanto, sei que vou morrer.
Hoje, não penso na minha morte.

Estou vivo como o diabo.
Sabem o que é isso, estar vivo como o diabo?
O diabo abana a cauda no meio do redemuinho.
Escorregando na vida como o diabo,
liso como o diabo,
com aquela baba gosmenta do diabo.
A vida me escorrega por entre os dedos como o dia-
bo.
E eu sei que não vou morrer. Não. Hoje não.

É dia. Gente entra e sai.
Vivi um século sem saber que doía. Sem saber que
não estava morrendo muito devagar.
Uma aranha me sobe pela cara.
Uma aranha se gruda na minha cara.
Estou limpo. Estou assustadoramente limpo.

Um banho, lençóis limpos, pijama limpo
e o mesmo corpo inerme.
Inerme? Eu nem sabia que doía. Eu doía.

Uma injeção me salva. Dormi. Dormi
como um homem dorme.
Como um anjo. Muito de leve.
Como um morto. O morto que eu fui.
E sou.

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quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Um poema de amor

Finados

Hoje é dia de finados
Você passeia pelo cemitério procurando meu túmulo

Choveu faz sol o dia está agradável
Você sente o perfume da morte

São as flores são as velas é um indefectível
Cheiro de carne que já não é

A carne dos mortos engorda a terra
E a terra é sempre magra

Fende-se parte-se em mil ranhuras
Já não se sabe o que é terra o que são ossos

A terra protesta os túmulos protestam
Muita festa e muita tristeza se fundem

Somente você não está triste
Você sabe que eu não estou em nenhum desses túmulos

Você procura o meu túmulo por procurar
Por uma diversão perversa

Eu deveria estar aí
Eu deveria estar embaixo da terra

Eu deveria ser um punhado de ossos
A minha alma mortal

A lembrança da minha presença
Fogo-fátuo espiralando-se no ar

A minha presença gorda no mundo
Dilui-se nas ruas do cemitério

Onde não estou
Você está sorrindo para o meu túmulo etéreo

A minha ausência estúpida
Ainda não é a hora do olvido

As águas passam debaixo das pontes
O vento assobia em algum sótão impalpável

Estou no sótão estou entre os afogados
Sou um homem entre os homens

Uma bunda ainda me excita
A língua o beiço vermelho

A mulher me justifica
Me derruba me anula

Você é sábia
O olhar conhece

As unhas as garras o bico adunco
A mulher domina

O mundo inútil
O corpo inútil do homem

Já não conheço as trevas
Já apaguei as luzes todas e vejo

O que existe para ser visto
Pairo

Não tenho carência de prêmios
Meu pai apontava os mortos

Carregava os mortos no bolso da camisa
Do lado do coração

Meu pai me ensinava lições de morte
Com orgulho

Estes sãos os meus mortos como que dizia
E acarinhava cabelos e ombros íntimos

Os mortos não carecem de prêmios
O maior prêmio da vida é a morte

Eu tenho orgulho da minha morte
Galardão

Mel na sombra sorvo tanto sol
Anoiteço na teia de aranha

A invenção do dia
No corpo da mulher

Eu me entrego à abelha-rainha
A mulher me consome no jardim

No mar sem fantasmas
No meio da rua

Um escorpião me assassina
O corpo vibra

O corpo explode com o veneno
Amor é grande

Você passeia pelo cemitério
Para me lembrar

Meu corpo lhe pertence
A alma a vontade fraca

As suas palavras cantam
“Você morreu, cara”

“Cara” – Nunca ninguém assim
Declarou o seu amor

Nem era preciso
Ter voltado.

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Um poema extemporâneo.
Mas fazer o quê! Eu, Gregório Vaz, sou extemporâneo.

Como não estamos em Finados
leia como um poema de amor.

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quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Fênix

As pedras caem sobre meu corpo.
O edifício desmorona sobre meu corpo.
Eu sufoco sob as pedras do edifício,
sob a terra, o pó, os ferros invisíveis
da grande pirâmide que cai sobre mim.

Que sou, sob essa montanha de pedras?
Que sou, que não respiro?
Eu, animalzinho indefeso sob o peso do mundo.
Eu, que não penso, já não sinto, objeto inútil
como qualquer objeto.
A grandeza humana evapora-se
quando você deixa de ser homem e é coisa
entre as coisas.

Você morre como uma fruta morre.
A fruta aduba a terra
e você aduba a terra
e isso é todo o sentido de ser fruta ou homem.

Morrer sem dar por isso foi o meu prêmio.
Morrer, mas eu voltei.
Não estava bem morto.
Sou o cara imperfeito
até na morte.

Ainda sinto as pedras caindo sobre mim.
Inerme como um pequeno inseto.
Insignificante como um pequeno inseto.

Sem dor,
sem nenhuma idéia na mente que se apaga,
sou o obejeto que se anula
porque objeto.

Eu soube que o mundo ruíra,
só muito depois eu soube que o mundo ruíra.
Um mundo de pedras desaba sobre meu corpo inútil.
Só muito depois me disseram: "Você está vivo,
cara."

Eu, que nunca me dera conta de estar vivo,
agora soube que morrera
e que estava vivo.

Agora que morrera,
eu estava vivo.

(Mas a chuva cai lá fora, longe do meu corpo,
inútil.
O espelho não me serve de nada,
é outrem quem eu vejo.
O meu cão lambe as mãos de outrem.
Eu me ajoelho diante do altar de um deus
de outrem, meu Deus,
eu que perdera a fé por desfastio,
ai, meus penates.)

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terça-feira, 14 de setembro de 2010

As botas do diabo

Tinha um pouco de bosta na minha bota
quando eu morri.

E eu nem usava botas.
Meus pés eram macios

no escuro
rumo a lugar nenhum.

Os quadros tremem na parede,
do outro lado o vazio.

O assoalho é muito velho,
a casa toda é muito velha,

As tias velhas,
os parentes muito antigos,

os parentes pendurados das paredes,
a morte escorrendo das paredes

com a pátina verde e branca
e o sangue vermelho.

Ficou o sangue
que não se apaga.

Estou distante,
já não distingo o frio da noite.

Não sei dizer o que aconteceu.
Talvez nada tenha acontecido,

um cochilo,
piscar de olhos,

história que me contaram,
angústia alheia.

(A nossa própria morte
não nos pertence.)

Mas eu acordei.
Foi um sonho leve. Mas eu acordei.

Eu me levantei de dentro do sangue
que me envolvia.

Tanto sangue
sobre meu peito.

Tanto sol e sangue
sobre minhas pálpebras.

Foi um sonho leve.
Sem pesadelos.

Eu acordei feliz.
Não pensei na morte ou na dor.

Nenhum desespero
no bolso das calças.

Eu estava leve
como um idiota feliz.

Apenas um pouco de bosta na minha bota
me lembrava a morte.

(Eu caminhara sobre as águas
com as botas do diabo.)

Ficou um perfume.
Ficou uma cor.

Ficou um dar de ombros.
Ficaram os dentes amarelos.

E ficou o pé no saco:
a morte é foda.

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sábado, 28 de agosto de 2010

A passagem

Eu estava morto
Morto como um morto

O sangue coagulado no peito
Como uma flor nojenta

Os olhos parados
Eram um espelho fosco

Os olhos parados
E o nada do outro lado

Eu me apagara
E ostentava um sorriso feliz

Nada mais triste que um idiota
Que não conta nenhuma história

Eu era o idiota
Que já não se importa

O trânsito parou
Porque eu estava morto

Porque eu era outro
Eu já não era

Eu retornava de lugar nenhum
Eu retornava com uma flor na boca

O mundo tinha as mesmas cores
Eu é que não tinha cor

Eu não tive nenhuma dor
Na passagem

Eu comprara passagem
De ida e volta

E nem soubera
Do embarque ou desembarque

Apenas perdera a cor
Com o sangue

Talvez um pouco da alma
Ou toda

Comprara alma nova
E descobrira que toda alma

É velha de séculos
Roupa de um morto maior

Tábua rasa
A vida é a vida meu bem

Viver é dar de ombros
Ao morto que fomos

Ou somos
O morto e o morto

A mosca sobre o olho
Inquieta

Como dói
Uma mosca

Havia um sol de fim de tarde
O sol do morto

O sol do cemitério
A flor dos túmulos

Às cinco em ponto da tarde
Que hora terrível meu Lorca

Fazia falta um caixão
Talvez eu me sentisse morto

Como é mesmo estar morto?
É preciso um caixão

Um caixão e o sol das cinco da tarde
É preciso baixar à sepultura

É preciso um pouco de terra
Uns tijolos e a argamassa

O suor escorrendo no olho do pedreiro
O público muito pouco

Porra alguém pensa
Porra eu digo

Que o morto não era o morto
Feio como um morto

Não era o morto
Como um ladrão no sono

O ladrão que anda torto pelos cantos
Nem sabe o que quer no escuro

Esbarra nos móveis
Faz um barulho do outro mundo

O morto é o ladrão no sono
Levou a minha alma

Não havia sol às cinco da tarde
Não havia túmulo

Não havia público
Não havia caixão

Muito sem graça
Passei manteiga na cara

E era outro
Era outro sem ter sido

O morto
Nem o vivo.

__________

Poema de "História a Minha morte", 2003.

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quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Aniversário




Aniversário

Cinqüenta anos de idade.
Meu presente mais-que-perfeito.
O presente que estou me dando.

Meio século de vida.
Por que comemorar meu aniversário?

Estou um século mais velho.
O que é que eu tenho para comemorar?

Cinqüenta anos ou apenas um ano?
Faz menos de um ano que eu nasci. Faz mesmo?
Crescem as dores nas juntas, as rugas, os cabelos
brancos,
os dentes apodrecem, o corpo e o espírito apodrece.
A idade pesa nos ombros,
a idade tem o peso de um túmulo.

Que quero eu da vida?
Nada.
Dizem que nasci ontem.
Mas nasci velho.

De repente me descobri velho.
Quando eu era mais jovem, um homem de cinqüenta
anos era um velho.
Quando cheguei aos quarenta, e a vida começa aos
quarenta,
me senti jovem: a vida começava aos quarenta.
Envelheci de repente.
Envelheci, sem mais nem menos.

É jovem o espírito?
Tenho muita saúde, disposição?
Mentira.
Vivemos de engambelações.
É verdade: por mais que queiramos destilar
otimismo,
a vida não tem o mesmo sabor.

Nasci ontem?
Renasci, depois de um acidentezinho besta.
Voltei velho.
Voltei estranho.
Sou um estranho no mundo.
ou o mundo é que é estranho para mim?
Tanto faz. Vegeto, pouco mais que isso.
Me importa o prazer: boa mesa, boa cama.
Sem grandes sonhos. Sem sonhos. Existo.

Não tenho planos.
Quero existir enquanto existo.
Não temo o futuro,
não planejo o futuro.
O futuro não existe.
Quero o aqui e o agora.
Sem muita determinação.
Ficam abolidas todas as frustrações.
Ser e não-ser se dão as mãos.

Quais os problemas a resolver?
Nenhuns.
La nave va.

Não tenho problemas.
Não vou a lugar nenhum.

Não conheço a verdade.
Não estou interessado em verdade nenhuma.

Quem é o dono da verdade?
Matem-no.
Ou não o matem. Dá na mesma.

Olho no espelho e não me encontro.
Quebro o espelho, pelo prazer de não me encontrar
em caco de vidro nenhum.

Talvez as estrelas se reflitam nos cacos de vidro.
Os homens, quando morrem, morrem.

Tanta gente morta.
Tantas cruzes à beira do caminho.
Cruzes anônimas. Tantos amigos, conhecidos,
parentes: esquecidos.

Vira a página e esquece.
A vida é isto: esquecimento.
Nenhum dia a mais senão o olvido.
Põe uma pedra sobre tudo que passou.
Se passou, já não é.

Escreve na areia as ofensas, as dores, os prazeres
da vida.
Tudo passa.
Scripta manent: não escreva nada.

Por que escrevo?
Tantos despropósitos na vida.

Quero viver este momento inútil.
Quero viver todos os momentos inúteis que me
forem dados.
Morrer, quando me for dado morrer.
E desta vez que seja para sempre.

Escrevo por desfaçatez.
Talvez eu deva isso a alguém.

Mas não quero pagar dívida nenhuma.
Escrevo por escrever.

Respiro por respirar.
Me acontece de respirar.

Não sou melhor nem pior por isso.
O mundo não é melhor nem pior por isso.
Não sou mais feliz ou infeliz.

Ou talvez seja.
Talvez eu procure alguma coisa,
talvez eu tenha encontrado.

O vento me dá na cara, neste momento,
e eu sinto prazer.
Os valores estão mudados.
Sinto prazer.
Sinto prazeres mínimos e enormes
e me sinto bem.

Talvez seja necessário dizer isso.
Para mim mesmo.
O resto do mundo? Que se dane.

Não posso salvar a humanidade
Não sei se a humanidade quer ser salva.
Não sei o que é salvar a humanidade.
Existo. Mais nada.

A fome, as desigualdades sociais, as guerras?
Não posso resolver.
Não posso mais sofrer.

Todas as dores humanas,
toda a grandeza e miséria humana
já não me pertencem.

Peço desculpas.
Ou não peço: saio de fininho.
Como quem já morreu.
Talvez eu já tenha morrido.

(Apenas o prazer me diz que eu estou vivo.
O prazer me diz que eu existo.
Não tenho mais desejos.
Culpado? Foda-se.)

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quarta-feira, 4 de agosto de 2010

terça-feira, 27 de julho de 2010

domingo, 25 de julho de 2010

Os elefantes

Um elefante incomoda muita gente.
Dois elefantes incomodam muito mais.
Mil elefantes incomodam ainda mais.

O mundo está cheio de elefantes.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

terça-feira, 13 de julho de 2010

sábado, 10 de julho de 2010

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Nel mezzo del camin

No meio do caminho tinha um pássaro,
Saiu voando.

No meio do caminho tinha uma árvore,
Saiu voando.

No meio do caminho tinha uma pedra,
Saiu voando.

As melhores imagens do poema
Saem voando.

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quarta-feira, 12 de maio de 2010

Ficção

O poeta é um fingidor,
disse Fernando Pessoa.
Eu digo com convicção:
tudo que escrevo é ficção.

sábado, 8 de maio de 2010

O outro

Estou onde não estou
e por mais que me procure
vejo sempre outro no espelho.

Resíduo

De tudo fica um pouco.
Nunca é muito pouco.
Às vezes é tudo.

Eu bem que gostaria de morrer,
mas não já.
Viver sempre também cansa (isto
é um poema de José Gomes Ferreira),
mas eu ainda não cansei.
E se cansar não vou contar para ninguém.

Drummond enumerou demais.
Basta um objeto,
um cisco,
um dejeto.
Já é vida demais.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Cidadezinha qualquer

A vida passa.
A carroça vai devagar,
mas a vida passa.
Os cachorros latem, a caravana se arrasta, uma tartaruga carrega o mundo no casco,
mas a vida passa.
Dizia sabiamente o poeta:
"Sopra, que passa."

sexta-feira, 30 de abril de 2010

A semente

Tenho uma semente na unha.
Não posso tirar,
senão a flor não nasce,
senão o beija-flor desequilibra sua dança.

quarta-feira, 28 de abril de 2010

sexta-feira, 23 de abril de 2010

A chuva, oras.

Chove lá fora
Como um cachorro.
O mundo não vai acabar
Apesar do vulcão.
Quem nos salvará?, perguntamos
E engolimos facas
E biscoitos do improvável.
Que poeira terrível,
Que cinza densa me sufoca,
Torna-se vidro
E tritura a minha alma.
Vontade de me jogar do alto de uma árvore
Para dentro de um lago suave.
Meu barco está ancorado
Porque não há timão que o governe
Quando navega.
Verlaine,
Onde Verlaine entra na história?
Ouço violinos e ciprestes
E pedras e cabras.
É João Cabral chamando-me à realidade?
É Rimbaud com suas aranhas
Devorando violetas?
O vento me leva,
E eu sei que a poesia
É água furando a pedra dura.

sábado, 10 de abril de 2010

Viva a república



Viva a república


Matem o poeta

cortem-lhe a garganta

arranquem-lhe a língua

sequem-lhe os pulmões


os olhos aos vermes

as unhas à fábrica

o cérebro aos porcos

e o fígado às moscas


é preciso urgente

urgente sufoquem

a voz do poeta

cruz-credo, cruz-credo


salvem a república

que não seja tarde

salvem a república

Deus nos livre e guarde


salvem a república

ela é filha única

salvem a república

dos nobres espíritos


salvem a república

a tão perfeitinha

oh matronas salvem

a republiquinha


salvem a república

ai republiqueta

salvem a república

do poeta besta


salvem a república

dos nobres políticos

que morra o poeta

e viva a república.

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quarta-feira, 24 de março de 2010

Um soneto entre pedra e água




Um soneto entre pedra e água

Entre pedra e água está tudo que eu mais quis
e, se não quisesse, seria outra história, outra
invenção, com os fantasmas sob as escadas,
no vão das almas, em qualquer lugar nenhum,

para os liames do princípio ao fim, e quem que
entenda do traçado, padre, bispo ou os cavalos,
que venha destrinchá-los, e o mais são reservas
de paciência para o futuro abstrair, ou trair, sim,

que de traições é feita a vida, essa ferida bem mal
curada, sempre aberta, para o azul, o céu e o mar
que nos chama de longiperto, com as fauces loucas

às escâncaras, soltando fogo, chamando, chamando,
com insistência de velha a fiar o tempo na roca da vida
e babando a baba negra da morte, como um ácido fervendo.

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sexta-feira, 19 de março de 2010

Uma orquestra no telhado




André


tenho um pé na banda e outro no gibi
tenho uma orquestra no meu telhado
tiro um banquete do meu teclado

jogo basquete de motocicleta
com o diabo na garupa
chupando cana e assobiando

pensa que é poeta, o capeta
e nem é mulher fogosa
nem menino com todos os desatinos

e termino dedicando noturno
este anti-poema para a alexandra
e para o raul ao luar

que o andré não arrede pé
deste poema sem pé
mas que quer seu lugar no espaço

entre as estrelas luzindo no infinito
ou no pó das coisas sem nome
além da infinita fome de poesia

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sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Desamor




por que tanto luxo no luzeiro
por que a crisma na cadeira
e o abacate no copo verde
e o desamor no bigode verde

por que a crisma do luxo
ou do lixo em cima da cadeira
por que o abacate verde no bigode
e tanto luzeiro no desamor

tenho um copo de luxo verde na mão
tenho um abacate sentado na cadeira
e o bispo luzindo no firmamento

não me venham com a crisma lírica
ou lúrida no meu pobre corpo
que tudo é desamor fundo do poço

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Nudez




Nudez

Estou cansado e meu olhar esquece
as imagens do dia e suas máscaras.
A noite gordurosa se apodera
do que sei e concebo, da palavra

que escrevo, por ofício de poeta.
Ofidio me recolho, ovo, repolho
palavras vagas nesta hora vaga
digo e repito, creme bolorento

ou o que for, o que se encrava e vaga.
E vago me refaço do meu susto
dos passos vagos na cidade vaga.

E como é tudo vago, vago fico
rico como uma cifra de jornal
vazio de tudo, vago e sujo, mudo.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Gregório Vaz & Machado de Assis




A lâmina nos olhos

O universo sobre a minha cabeça
como um chapéu ou a coroa do velho
Rubião. A incógnita da servidão.
Humana é a dor. Arco, estrelas, flor? Estou só

e sei o tamanho do meu ânus. Uso palavras
poucas: o prisma, os sete sentidos. No mais
digo o que digo, o coração na mão.
Não sei meu destino. A morte é dos puros

das namoradinhas de antigamente. Meus são
os pesadelos, a febre e seus minotauros
seus monstros de mil faces e uma só: as jaulas
assépticas da cidade podre, o lodo por baixo.

Óleo, excremento, pus: máquinas lubrificadas.
O poeta é um animal cansado: rumina o mito
espumas na boca. Chega a hora do silêncio.
Esquartejemos o poema! Seu fel, sua negra beleza.

Chega a hora das alucinações desenfreadas.
Pulmão noturno, o belo pulsa.
O crime, a lepra, a espera de dias melhores
que virão, virão, um cadáver está dizendo.

A cidade dorme, a cidade é uma asquerosa
megera dorminhoca. É a hora, é a hora.
As luzes se apagaram, tudo é miragem.
Escarrem com raiva, inventem a raiva.

Quem tem medo, afogue-se no rio do trânsito.
Tudo é passagem. Não me peçam sensatez.
Quem não mata o que ama, não viveu.
A verdade está acima de todas as convenções

quando o espelho, a lâmina nos olhos.
Viva a náusea. Estamos vivos.
Alucinações! Relógio da solidão. Vamos
dançar uma valsa sobre nossos túmulos futuros.

Viva a alegria! Tiro o chapéu. Vai, universo
vai passear por aí. Hoje viveremos.

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quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Carlos Drummond de Andrade e Gregório Vaz




O POETA FEDERAL

O poeta federal tira ouro do nariz.
Foi apenas blague, Drummond
ou sabença de mais valia
de vida e poesia

sem alheamentos
e porosidades vãs?
O poeta colhe, do nariz
o ouro. De onde

o colheria? De que palpite
infeliz? De que feliz
alvenaria? A poesia
fede e cheira. É vida

completa: pérolas
e dejetos. O poeta
tira ouro do nariz
tira o ouro onde estiver.

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sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Mallarmé revisitado 2




Brisa Urbana

Todos os livros são tristes, e a carne.
Há pássaros loucos no céu da cidade
babando a espuma do ódio
que move o sol e as outras estrelas.

Nos lagos do olhar afoga-se
uma cobra, nas dobras da memória.
Uma lâmpada fosca pende na rua
na noite nua e úmida como um túmulo.

A folha cinza brinca, múmia, à espreita
do poema tímido, sonâmbulo esqueleto
sem leito, âncora, num tédio imenso.

Danço a negra dança do destino,
canto os verdes hinos do desatino.
Sou um poeta pobre e sem brilho

oh minha alma sem martelo e sem bigorna.
Os mastros estão de rastros e não há mar

onde caiba o meu desgosto, a carne
um engodo e todos os livros, tristes.

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terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Mallarmé revisitado




UM COPO DE DADOS

Um copo de dados não abolirá
o azar. Casa-se ocaso e acaso?
Uma lança fura as nádegas
de lado a lado, Joaquim.

Estou triste e quem não estiver
que se dane, não é, Manuel?
Somos todos bons burgueses!
Mas a nossa pança de bosta, eia!

vale mais que o pé sem meia?
Não quero saber da poesia
parida no buraco do rato.

Quero a poesia como uma faca
na barriga. Que o sangue jorra.
Pus. Onde pus a esperança

é logro, o lúcido, o podre.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Poética do podre




5

Clamam gnomos de óculos
em bosques de plástico
as árvores túmulos
as máscaras cólicas
minha imagem trágica
essa dor aguda
na cara nas nádegas.

O poema podre
a rima e seu logro
nada vezes nada
o poeta urbano
torto feio e sujo
com tais predicados
encolhe a palavra.


6

A rua estava triste, como sempre.
Anjos tocavam banjos? Bolas.
Flores de cera, murchas nádegas
chacoalhavam-se, vacas melancólicas.

E tu querias duas melancias, menina?
Enfia a cara onde quiseres, minha velha.
Estou bêbado de desejo! A quimera
do primeiro beijo, do último arquejo?

Quero uma gueixa que me console
me coce os pés e o sovaco, mais nada.
Por que as estrelas de outrora soluçam

atrás da porta que não há? Bolas.
Não há palavras que sufoquem
o sufoco em que vivo, ficha num arquivo.

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